
A expressão videográfica, que se espraia como uma das vertentes do império audiovisual da sociedade contemporânea, permite, ao contrário da expressão cinematográfica – por força da exigência do capital, uma liberdade sem limites, e aquele que se exprime por meio dela pode se dar ao direito de fazer o que quiser com a sua imaginação. Os festivais promovidos nestas plagas são exemplares na medida em que servem para radiografar como esta nova forma de expressão se encontra sendo manipulada pelos chamados videastas. A apreciação pode ser feita de acordo com a maneira pela qual o realizador articula os elementos da linguagem, que, geralmente, está livre das amarras de um roteiro e se desenvolve quase que no momento da filmagem, havendo, apenas, uma idéia geral como fio condutor, e de acordo com o conteúdo gestado pelos vídeos. Assim, pode-se falar de um elo sintático – a linguagem utilizada – e um elo semântico – o que o videasta quer dizer, afinal de contas. Se antigamente – e não se pretende aludir, aqui, às priscas eras, na época da cultura literária, o jovem se exprimia pela poesia – na verdade, a grande maioria se constituía de dispensáveis versalhadas, hoje, com a ditadura da imagem, a expressão é feita por meio delas. O advento do vídeo veio a calhar, ainda que tenha como precursor o boom superoitista verificado em meados do decurso dos 70.
Mas o Super 8 não possibilitava a facilidade que se tem, hoje, com o digital, que democratizou, esta, a verdade, a expressão pelas imagens em movimento.
A apreciação de uma obra cinematográfica e a apreciação de um produto audiovisual videográfico, ainda que esteja tudo no mesmo saco da narrativa audiovisual, devem ser feitas com um sentido perceptivo diferenciado, considerando as particularidades de cada um e a forma pela qual a idéia é desenvolvida na película de celulóide e na esteira digital. Evidente que não está aplicada, esta diferenciação apreciativa, àquelas obras que, em formato digital, se configuram como produtos iguais aos feitos em celulóide, mas a aplicação está afeita às manifestações videográficas de curta duração, como as centenas que se mostraram nos festivais ocorridos em Salvador e em vídeos caseiros que circulam entre amigos. A ânsia expressiva é tanta que o realizador não tem paciência para a elaboração de um roteiro, e quer logo a práxis, desejando imediatamente pegar na câmera e sair filmando, o que ocasiona, muitas vezes, certos vexames expressivos, resultando na emergência de vídeos que estariam melhor colocados numa lixeira virtual.
A diversidade, no entanto, se, por um lado, mostra a vacilante capacidade expressiva e um desdém pela pré-visualização, por outro apresenta uma amostragem do que se está a fazer, servindo, neste particular, de um panorama do que se encontra no imaginário dos videastas contemporâneos assim como, também, na maneira claudicante de exprimir suas idéias. Certa ocasião, Carlos Heitor Cony, entrevistando, para a Manchete, em 1979, o grande cineasta Robert Wise, perguntou-lhe o que, no filme, era o mais importante. Sem pestanejar, o diretor de “West Side Story” e “Punhos de Campeão” respondeu-lhe: a Idéia. E o interessante na expressão videográfica é uma análise no sentido do recolhimento das idéias que se apresentam, o que, diga-se logo, não é assunto desse artigo. Deixa-se este trabalho para Marcos Pierry, que se encontra afundado até o pescoço na exegese das obras superoitistas cujos rebentos mais que perfeitos foram paridos nos anos 70, como os manifestos navarristas e as experiências sui generis belensianas, entre outros videntemente.
O que se pretende aqui é falar um pouco de um vídeo que se teve oportunidade de ver e que causou polêmica por causa de seu elo semântico que se incorpora ao elo sintático. Trata-se de “O Fim do Homem Cordial” (FHC), de Daniel Lisboa, Principal vencedor do último festival de cinco minutos, patrocinado pelo DIMAS (da Fundação Cultural do Estado da Bahia), o vídeo, por mostrar uma situação inusitada, segundo se fala, foi fator determinante de abalos sísmicos na estrutura administrativa do setor de audiovisual desse órgão governamental. Porque o júri – formado por pessoas de diversos estados e que talvez não conhecessem as idiossincrasias da política baiana – premiou como melhor vídeo justamente um que ataca de frente ACM-Corleone – no dizer do jornalista Hélio Fernandes – e, ainda por cima, a sua rede de comunicação, cuja ponta de lança é a Tv Bahia e o seu indefectível telejornalismo, à frente o BaTv.
A linguagem videográfica se tornou uma possibilidade de expressão totalmente sem vínculos com esquemas de produção – amarras que tanto intranqüilizam um cineasta como Edgard Navarro que, em entrevista há dois meses ao jornal A Tarde, manifestou seu desencanto com o fazer cinema pelos problemas encontrados na finalização de “Eu me lembro”. Pode-se, inclusive, jogar a câmera para cima, como bola de neve. E fazer estragos aqui e ali, estragos não no sentido pejorativo, mas no sentido de jogar vatapá no ventilador. Se um pequeno vídeo consegue provocar estragos, por assim dizer, creio que seu processo de comunicação foi fechado. E, ainda, foi mais além. Emitido, foi recebido por platéia entusiasmada e, ainda, tornou-se um pivô de uma crise em órgão estatal.
É esta liberdade de se dizer o que quiser e da maneira que melhor convier que faz da expressão videográfica um diferencial nesse processo de comunicação pelas imagens em movimento. Após ser premiado, segundo conta o seu autor, Daniel Lisboa, houve um silêncio estrondoso em torno de “O Fim do Homem Cordial”, também conhecido e citado como FHC. Mas somente aqui em Salvador por razões mais do que conhecidas, pois Lisboa está sendo convidado para apresentá-lo em vários festivais, inclusive o do Ceará. FHC – e que não se confunda com o energúmeno que doou o Brasil, vendendo boa parte de nosso patrimônio – foi apresentado, de surpresa, durante o Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, com muito boa acolhida.
Segundo palavras do próprio realizador, “No filme, a reação contra o poder é inspirada na onda de imagens divulgadas por grupos terroristas, após os atentados de 11 de setembro. Qualquer pessoa, que tenha acompanhado os noticiários televisivos dos últimos três anos, pode perceber uma serie de imagens de grupos terroristas, com reféns, filmadas e divulgadas pelos próprios. Essas imagens são diferentes de todo o material exibido pelas emissoras de noticias. Essa configuração de imagem é dirigida pelos próprios terroristas. Um novo elemento audiovisual, não cordial, é incorporado e cria uma mancha na programação normal. É a estética do terror, da fome, do anti-cordial, da intolerância, da violência e da justiça”.
Barrado do baile na província, “O Fim do Homem Cordial” está sendo reconhecido nos festivais. O que se destaca neste vídeo é justamente a liberdade do autor na expressão por um veículo, que vem a permitir desde a experimentação mais radical, passando pela coreografia muscular (vide os trabalhos de Marcondes Dourado) até um estilhaço como “Homem Cordial”, de Daniel Lisboa. Panfletário, sem papas na língua, gritado, o vídeo tem apenas uma tomada verdadeiramente encenada que é o plano fixo do seqüestrado no chão com seus algozes ao redor, que gritam palavras de ordem contra o carlismo. As outras imagens são recolhidas de arquivo. Mas o que torna “O Fim do Homem Cordial” um trabalho interessante não é, propriamente, o grito revolucionário que porventura contenha, mas certas sugestões imaginosas, como a idéia de inserir uma dublagem a fazer com que o apresentador do BaTv fale em língua esquisita e estranha devidamente legendada em português. E a captação de um momento de perplexidade do apresentador no final, enquanto sobem os letreiros do vídeo, assim como procede também o término com a subida dos créditos no telejornal.
O apresentador do BaTv informa que um grupo seqüestrou o senador Antonio Carlos Magalhães e que, como única alternativa de livrá-lo de seus algozes, estes exigiram que a imagem do seqüestrado seja vista pelos telespectadores enquanto os seqüestradores ditam palavras de ordem contra a supremacia de uma política coronelística. Após as imagens de um ACM ao nível do chão, pisoteado e machucado, um Casemiro Neto sem saber o que fazer, perplexo, encerra a edição do dia.
A apreciação de “O Fim do Homem Cordial” deve ser feita a partir da compreensão dessa estética sui generis do estupro visual e da manipulação das imagens em função de um processo de transferência de significados.
Fonte: Coisa de Cinema (http://www.coisadecinema.com.br/).
Links: Assista o filme aqui : http://www.soononmoon.org/cineaum/FHC.mpg
Mais sobre as reações causadas pelo filme e os movimentos de apoio:
http://www.vermelho.org.br/diario/2005/0614/0614_filme_bahia.asp
http://www.midiaindependente.org/eo/blue/2005/06/319847.shtml
http://brasil.indymedia.org/es/green/2005/06/319667.shtml
Mas o Super 8 não possibilitava a facilidade que se tem, hoje, com o digital, que democratizou, esta, a verdade, a expressão pelas imagens em movimento.
A apreciação de uma obra cinematográfica e a apreciação de um produto audiovisual videográfico, ainda que esteja tudo no mesmo saco da narrativa audiovisual, devem ser feitas com um sentido perceptivo diferenciado, considerando as particularidades de cada um e a forma pela qual a idéia é desenvolvida na película de celulóide e na esteira digital. Evidente que não está aplicada, esta diferenciação apreciativa, àquelas obras que, em formato digital, se configuram como produtos iguais aos feitos em celulóide, mas a aplicação está afeita às manifestações videográficas de curta duração, como as centenas que se mostraram nos festivais ocorridos em Salvador e em vídeos caseiros que circulam entre amigos. A ânsia expressiva é tanta que o realizador não tem paciência para a elaboração de um roteiro, e quer logo a práxis, desejando imediatamente pegar na câmera e sair filmando, o que ocasiona, muitas vezes, certos vexames expressivos, resultando na emergência de vídeos que estariam melhor colocados numa lixeira virtual.
A diversidade, no entanto, se, por um lado, mostra a vacilante capacidade expressiva e um desdém pela pré-visualização, por outro apresenta uma amostragem do que se está a fazer, servindo, neste particular, de um panorama do que se encontra no imaginário dos videastas contemporâneos assim como, também, na maneira claudicante de exprimir suas idéias. Certa ocasião, Carlos Heitor Cony, entrevistando, para a Manchete, em 1979, o grande cineasta Robert Wise, perguntou-lhe o que, no filme, era o mais importante. Sem pestanejar, o diretor de “West Side Story” e “Punhos de Campeão” respondeu-lhe: a Idéia. E o interessante na expressão videográfica é uma análise no sentido do recolhimento das idéias que se apresentam, o que, diga-se logo, não é assunto desse artigo. Deixa-se este trabalho para Marcos Pierry, que se encontra afundado até o pescoço na exegese das obras superoitistas cujos rebentos mais que perfeitos foram paridos nos anos 70, como os manifestos navarristas e as experiências sui generis belensianas, entre outros videntemente.
O que se pretende aqui é falar um pouco de um vídeo que se teve oportunidade de ver e que causou polêmica por causa de seu elo semântico que se incorpora ao elo sintático. Trata-se de “O Fim do Homem Cordial” (FHC), de Daniel Lisboa, Principal vencedor do último festival de cinco minutos, patrocinado pelo DIMAS (da Fundação Cultural do Estado da Bahia), o vídeo, por mostrar uma situação inusitada, segundo se fala, foi fator determinante de abalos sísmicos na estrutura administrativa do setor de audiovisual desse órgão governamental. Porque o júri – formado por pessoas de diversos estados e que talvez não conhecessem as idiossincrasias da política baiana – premiou como melhor vídeo justamente um que ataca de frente ACM-Corleone – no dizer do jornalista Hélio Fernandes – e, ainda por cima, a sua rede de comunicação, cuja ponta de lança é a Tv Bahia e o seu indefectível telejornalismo, à frente o BaTv.
A linguagem videográfica se tornou uma possibilidade de expressão totalmente sem vínculos com esquemas de produção – amarras que tanto intranqüilizam um cineasta como Edgard Navarro que, em entrevista há dois meses ao jornal A Tarde, manifestou seu desencanto com o fazer cinema pelos problemas encontrados na finalização de “Eu me lembro”. Pode-se, inclusive, jogar a câmera para cima, como bola de neve. E fazer estragos aqui e ali, estragos não no sentido pejorativo, mas no sentido de jogar vatapá no ventilador. Se um pequeno vídeo consegue provocar estragos, por assim dizer, creio que seu processo de comunicação foi fechado. E, ainda, foi mais além. Emitido, foi recebido por platéia entusiasmada e, ainda, tornou-se um pivô de uma crise em órgão estatal.
É esta liberdade de se dizer o que quiser e da maneira que melhor convier que faz da expressão videográfica um diferencial nesse processo de comunicação pelas imagens em movimento. Após ser premiado, segundo conta o seu autor, Daniel Lisboa, houve um silêncio estrondoso em torno de “O Fim do Homem Cordial”, também conhecido e citado como FHC. Mas somente aqui em Salvador por razões mais do que conhecidas, pois Lisboa está sendo convidado para apresentá-lo em vários festivais, inclusive o do Ceará. FHC – e que não se confunda com o energúmeno que doou o Brasil, vendendo boa parte de nosso patrimônio – foi apresentado, de surpresa, durante o Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, com muito boa acolhida.
Segundo palavras do próprio realizador, “No filme, a reação contra o poder é inspirada na onda de imagens divulgadas por grupos terroristas, após os atentados de 11 de setembro. Qualquer pessoa, que tenha acompanhado os noticiários televisivos dos últimos três anos, pode perceber uma serie de imagens de grupos terroristas, com reféns, filmadas e divulgadas pelos próprios. Essas imagens são diferentes de todo o material exibido pelas emissoras de noticias. Essa configuração de imagem é dirigida pelos próprios terroristas. Um novo elemento audiovisual, não cordial, é incorporado e cria uma mancha na programação normal. É a estética do terror, da fome, do anti-cordial, da intolerância, da violência e da justiça”.
Barrado do baile na província, “O Fim do Homem Cordial” está sendo reconhecido nos festivais. O que se destaca neste vídeo é justamente a liberdade do autor na expressão por um veículo, que vem a permitir desde a experimentação mais radical, passando pela coreografia muscular (vide os trabalhos de Marcondes Dourado) até um estilhaço como “Homem Cordial”, de Daniel Lisboa. Panfletário, sem papas na língua, gritado, o vídeo tem apenas uma tomada verdadeiramente encenada que é o plano fixo do seqüestrado no chão com seus algozes ao redor, que gritam palavras de ordem contra o carlismo. As outras imagens são recolhidas de arquivo. Mas o que torna “O Fim do Homem Cordial” um trabalho interessante não é, propriamente, o grito revolucionário que porventura contenha, mas certas sugestões imaginosas, como a idéia de inserir uma dublagem a fazer com que o apresentador do BaTv fale em língua esquisita e estranha devidamente legendada em português. E a captação de um momento de perplexidade do apresentador no final, enquanto sobem os letreiros do vídeo, assim como procede também o término com a subida dos créditos no telejornal.
O apresentador do BaTv informa que um grupo seqüestrou o senador Antonio Carlos Magalhães e que, como única alternativa de livrá-lo de seus algozes, estes exigiram que a imagem do seqüestrado seja vista pelos telespectadores enquanto os seqüestradores ditam palavras de ordem contra a supremacia de uma política coronelística. Após as imagens de um ACM ao nível do chão, pisoteado e machucado, um Casemiro Neto sem saber o que fazer, perplexo, encerra a edição do dia.
A apreciação de “O Fim do Homem Cordial” deve ser feita a partir da compreensão dessa estética sui generis do estupro visual e da manipulação das imagens em função de um processo de transferência de significados.
Fonte: Coisa de Cinema (http://www.coisadecinema.com.br/).
Links: Assista o filme aqui : http://www.soononmoon.org/cineaum/FHC.mpg
Mais sobre as reações causadas pelo filme e os movimentos de apoio:
http://www.vermelho.org.br/diario/2005/0614/0614_filme_bahia.asp
http://www.midiaindependente.org/eo/blue/2005/06/319847.shtml
http://brasil.indymedia.org/es/green/2005/06/319667.shtml